São José, e os “amigos do Coração de Jesus”
É provável que você, sendo parte da Família Chevalier, em algum momento da vida tenha ouvido nas nossas preces a invocação “São José, exemplo e padroeiro dos amigos do Coração de Jesus, rogai por nós!”. Trata-se de algo muito antigo e bastante difundido entre nós. Entretanto, ao rezá-la, pode ser que nos perguntemos: Será que ainda faz sentido usar essa invocação hoje?
Bom, minha intenção aqui não é fazer um estudo acadêmico sobre o tema. Gostaria apenas de partilhar com simplicidade uma reflexão sobre este aspecto importante da nossa espiritualidade que é a devoção à São José e a pertinência de o invocarmos como padroeiro dos “amigos do Coração de Jesus”. Com esse intuito, vamos agora fazer uma breve visita às nossas fontes, ou seja, àquilo que ficou registrado dos pensamentos de nosso fundador.
São José e a “Pequena Sociedade” dos MSC
Em primeiro lugar, é importante que se registre que a invocação “São José, exemplo e padroeiro dos amigos do Coração de Jesus” remonta diretamente ao padre Chevalier. Disso nos dá testemunho a obra “Le Sacré-Coeur de Jésus”, de sua autoria. Ali vemos que em setembro de 1855, quando houve a instalação e benção de nossa primeira capela (que era um estábulo abandonado), surgiu no coração de nosso fundador uma pergunta: “sob que título poderemos invocar São José neste local sagrado, todo dedicado ao Coração de Jesus?” Depois de ter rezado e refletido muito, lhe veio ao pensamento a ideia de dar ao pai de Jesus o título de “São José, amigo do Sagrado Coração”.
De fato, o Pe. Chevalier seguiu sua intuição e passou a chamar São José de “amigo do Coração de Jesus”. Porém, passado um tempo, como desejava usar esse título publicamente, era necessário submeter essa invocação ao crivo do Santo Ofício, como havia sido feito com o título de “Nossa Senhora do Sagrado Coração”. Ao fazer isso, entretanto, a Santa Sé respondeu-lhe que ser “amigo do Coração de Jesus” não parecia ser um título suficientemente glorioso para o Esposo de Maria. Assim, foi feita uma alteração, de modo que São José poderia ser invocado como “Exemplo e Padroeiro dos Amigos do Coração de Jesus”.
Dois anos depois da inauguração daquela pequena “Igreja-estábulo” de que falamos há pouco, houve um outro fato que coloca em relevo a relação de confiança que tinha nosso fundador para com São José. Aconteceu que, certa manhã, ao se dirigirem para a igreja, encontram uma parte da construção desmoronada. E era, justamente, o lado em que estava o altar de São José. Como não tivessem meios para reparar o estrago, Chevalier voltou-se para a imagem do Santo entre os escombros e lhe disse: “O desastre aconteceu do seu lado. Então é você quem terá que arrumar isso!”. Não demorou quase nada e um benfeitor se manifestou para reparar a Igrejinha. Isso fez nosso fundador redobrar a confiança que já tinha no Chefe da Sagrada Família.
Outros fatos poderiam ser narrados, mas creio que isso já é suficiente para nos dar uma ideia do apreço que Chevalier dedicava a São José. Sendo fundador, quis comunicar à sua família religiosa essa mesma devoção. Testemunha disso são as primeiras “Regras” (1855 e 1857) nas quais apresenta São José como “depositário e guardião fiel dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria”, a “Formula Instituti” (1869) e as Constituições de 1877, na qual se pode ler que “Sob a proteção desse insigne padroeiro, a Congregação colocará suas casas agora e no futuro; por isso sempre o reconhecerá como Dono e Provedor das mesmas.”
Uma “espiritualidade do coração” ao estilo de José?
Após o Concílio Vaticano II, na esteira da promulgação do decreto Perfectae Caritatis, a Vida Consagrada experimentou um intenso movimento de retorno às fontes. Cada Instituto iniciou um processo de busca por redescobrir os motivos de sua existência e de realizar um “aggiornamento” de seu modo de ser e atuar na Igreja. Foi algo semelhante ao processo feito pelos restauradores de arte, que, ao receber um quadro que já foi repintado muitas vezes, vão raspando camada por camada, até chegar ao desenho original.
Conosco não foi diferente. No espírito do Concílio, muitos confrades se dedicaram seriamente a esse trabalho, e, desse esforço, nasceram excelentes reflexões que vieram a frutificar no atual texto de nossas Constituições e num grande número de publicações sobre nossa espiritualidade. De tudo o que foi elaborado, entretanto, gostaria de destacar a valiosa ideia da “Espiritualidade do Coração”, tão cara a E. Cuskelly, que foi nosso Superior Geral durante esse processo de renovação conciliar.
A “Espiritualidade do Coração” busca ser um modo de ressignificar o que por muito tempo foi chamado de “Devoção ao Sagrado Coração”. Para isso, foi preciso debruçar-se sobre os textos de nosso fundador, tentar entender o “espírito” daquilo que estava sendo comunicado por Chevalier, para que, de posse dessa compreensão, se pudesse “traduzir” aquilo numa linguagem mais contemporânea e que fizesse sentido no mundo de hoje. Assim, à medida em que foi sendo feito um aprofundamento nos escritos de nosso fundador, foi-se percebendo que quando ele falava de “Coração de Jesus”, não se referia somente a uma série de práticas devocionais. Havia algo de maior: referia-se à contemplação daquele Coração compassivo de Jesus descrito nos Evangelhos. O Coração de Jesus, portanto, para Chevalier, não era algo etéreo, mas algo muito concreto e questionador. Tratava-se de estar atentos ao modo como Jesus usava seu coração. Observar quem eram as pessoas que ele elogiava, observar com quem se sentava para comer, e também prestar atenção aos comportamentos e pessoas que Jesus censurava. Ao nos dedicarmos a uma tal contemplação do Coração de Jesus, deveríamos nos questionar se andamos usando o nosso coração do jeito que ele usava o dele. Se não estamos, então, precisamos mudar algo. Eis a “espiritualidade do coração”: contemplar o coração de Cristo e tentar fazer o nosso coração semelhante ao dele.
Nossa espiritualidade, entendida assim, abre espaço para uma prática que além de cristocêntrica, é também, por assim dizer, evangelhocêntrica. É o Coração de Cristo dos evangelhos que seguimos. E, ao colocarmos em prática a sua palavra, a vida vai ficando mais plena, mais bonita, e isso, então, nos motiva a ser missionários. Ora, se viver o Evangelho traz alegria, então, vamos “por toda parte” espalhando alegria! Nos transformamos em um fogo que acende outros fogos, e saímos incendiando o mundo, pois somos discípulos daquele que veio “trazer fogo à terra” e que deseja “que tudo se abrase”(Cf. Lc 12, 49).
A “espiritualidade do coração” nos ajudou a redescobrir o Coração de Jesus no pós-Concílio. E, fiéis ao nosso fundador, não deixamos de lado nossa “Fundadora”. Na mesma linha foi feita também toda uma rica reflexão mariológica a respeito do título de Nossa Senhora do Sagrado Coração, que resultou em muita coisa linda.
Mas de São José, coitado… poucos se lembraram dele.
Felizmente, o Papa Francisco nos convidou a celebrar o Ano de São José de 8 de dezembro de 2020 até 8 de dezembro de 2021. E essa pode ser uma bela ocasião para redescobrirmos o lugar de São José na Espiritualidade do Coração. Não será este o momento oportuno para repararmos esta lacuna, na fidelidade àquilo que a nosso Fundador sempre foi muito caro?
A princípio pode parecer um trabalho duro. Mas, olhando na direção certa, talvez achemos um caminho a ser aberto para uma “espiritualidade do coração josefina”. Veja bem, nosso fundador queria honrar São José nas suas “relações com o Coração de Jesus”. Se não temos muito o que pesquisar sobre São José explicitamente na Bíblia, podemos tentar procurá-lo naquilo que o Coração de Jesus nos revela indiretamente sobre ele.
Uma vez que cremos na Encarnação, ou seja, que Jesus se fez ser humano igual a nós, é conclusão lógica crer que precisou que lhe educassem, afinal, todo ser humano é assim. Precisou que lhe ensinassem a andar, a falar, a trabalhar, etc. Mas além disso, como o processo da educação de uma criança vai além da transmissão de conteúdos, a educação de Jesus também comportou, por assim dizer, uma certa educação afetiva. A maneira como nos relacionamos com os outros, como lidamos com os nossos afetos, a nossa autoestima, muito disso se deve à nossa família. Ora, se com todos nós foi e é assim, com Deus feito ser humano não pode ter sido diferente. Desse modo, foi no lar de Nazaré que o Verbo Eterno aprendeu a ser gente e a usar seu Coração…
Não temos relatos escritos realmente fidedignos de como teria sido a convivência nesse lar, porém, dedutivamente, podemos intuir como foi a educação de Jesus, observando o seu comportamento já adulto, através do que nos relatam os evangelhos.
E como é a pessoa que encontramos nesses escritos? Em primeiro lugar, um homem cheio de ternura, que abraça crianças, que é capaz de deixar-se tocar nos pés por uma mulher, que aceita que lhe espalhem perfume com a mão na sua cabeça, que chora a perda do amigo sem nenhum pudor… Ora, todo esse afeto vivido tão equilibradamente só é possível a uma pessoa bem resolvida. Vendo-o adulto dessa forma, podemos até imaginar como teria sido sua infância no lar de Nazaré. Quantas vezes José não teria chegado cansado em casa e cumprimentado Maria com um beijo, diante dos olhinhos atentos de Jesus? Quantas vezes esse mesmo José não teria deitado no chão para brincar e rir com o menino que crescia? Quantas vezes Jesus não teria dormido no colo de José? Todas essas demonstrações de afeto e de respeito humano, possíveis em qualquer família, aconteciam em Nazaré e marcaram Jesus para sempre… Eram gente. Pessoas normais. Curioso como, às vezes corremos o risco de imaginar o lar de Nazaré como se fosse uma capela onde Maria e José vivessem em adoração perpétua ao menino-Santíssimo, queimando incenso e cantando o “tantum ergo”. Imaginar uma Sagrada Família desse modo esvaziaria o mistério da Encarnação, que tanto impactou Chevalier.
Na sua vida pública vemos Jesus sentar-se para comer com qualquer pessoa, sem nenhuma cerimônia. Por que não crer que isso pudesse ser coisa da sua família? Imagino a casa de Nazaré sempre cheia. Casa de pobre sempre tem lugar para mais um. Na mesa há riso, afeto, vizinhos, parentes, amigos. Quase posso ver o menino Jesus que passa de colo em colo. Ensaia sua primeira palavra “abbá!”. Todos riem, José se emociona ao ouvir o menino chamá-lo. Coisas de uma família normal.
Aliás, o teólogo Leonardo Boff, no livro “São José, a personificação do Pai”, inclusive deixa entrever sua opinião de que talvez seja essa a maior contribuição de José na formação do Coração de Jesus. O Cristo nos ensina a chamar Deus de “abbá”. Essa palavra tão comum na boca das crianças até hoje, é um grito: papai! Era o modo como Jesus se dirigia a José. Se Jesus não tivesse tido uma boa experiência com o uso dessa palavra em sua casa, jamais chamaria assim o “Pai do Céu”, que é misericordioso, que não deixa faltar roupa ao lírio do campo nem comida aos pardais, que faz chover sobre justos e injustos. O gosto da palavra Abbá na boca de Jesus deve-se, portanto, a José.
Nesse sentido, acredito não ser errado dizer que o evangelho comporta uma dimensão josefina profunda, mas pouco visível. No evangelho, José nada fala, mas, em certo sentido, no evangelho tudo fala de José…
Os “amigos do Coração de Jesus”
Recentemente tive uma conversa sobre esses temas com um velho amigo meu. E contei-lhe que em nossa Congregação, nós chamamos São José de “exemplo e padroeiro dos amigos do Coração de Jesus”. A primeira reação dele foi divertida: “Meu Deus, que nome comprido!”, mas depois ficou pensando e acrescentou: “Padroeiro dos amigos do Coração de Jesus… Quem são os amigos do Coração de Jesus?”. Silenciei. Achei a pergunta profunda demais. Comecei então, a refletir. E lembrei da mesa de Nazaré, como eu a imagino, lembrei das passagens do Evangelho em que Jesus está à mesa, lembrei dos fariseus irritados porque Jesus “acolhia pecadores e comia com eles” (Lc 15, 1) e meditei longamente. Achei importante ligar amizade e mesa, porque em geral a gente só sai pra comer com quem é amigo da gente. Desse modo, se queremos saber quem são os amigos de Jesus, vejamos com quem ele se senta para comer.
Pedi então a um artista conhecido meu, o Timóteo André (@__theo.art), que me fizesse um desenho. Lhe disse: “na sua opinião, se a Sagrada Família vivesse hoje, quem seriam os amigos de Jesus?” Achei interessante retroceder o tema até o tempo que Jesus vivia com sua família, porque ali deve estar o início desse comportamento de Jesus de acolher a mesa toda a gente. O artista me surpreendeu, então, com esse desenho em que Jesus é brasileiro e negro, e está sentado na calçada da frente da sua casa, cercado de pobres, ladeado por uma mãe-de-santo, um monge budista, e cercado de todos os que são chagados pelo preconceito. Maria, a mãe, de pé os observa. José, o pai, senta-se junto, tocando o ombro do filho. Gosta dos amigos do Filho dele. São “amigos do coração” de Jesus (em português, quando queremos dizer que alguém é muito amado, dizemos que a pessoa é um “amigo do coração”). Me detenho a olhar a figura de José, que está muito à vontade ali. Se são amigos do seu Filho, são amigos dele também. Posso o ver indo buscar algo de comer em casa para repartir com a turma, rindo de suas piadas, ouvindo suas queixas…
É aí que penso na nossa Pequena Sociedade. É aí que penso em São José, padroeiro dos “amigos do coração” de Jesus. Penso também naquele estábulo que foi transformado em nossa primeira capela, penso no celeiro que se tornou nosso primeiro convento. Penso em Chevalier e Maugenest varrendo a capela, cozinhando a própria comida, trabalhando como José, com o coração em chamas…
Já passamos dos 150 anos de idade, andamos muito pelo mundo, fizemos muita coisa. Mas a pergunta mais fundamental que acredito que sempre devemos nos fazer é: será que temos estado nos lugares certos e com as pessoas certas? Estamos, com São José, cuidando dos “amigos do coração” de Jesus? Nossa missão por toda parte, está realmente empenhada em estar próximos de todos os que ninguém quer ter como amigos, hoje?
Em nosso tempo continua havendo males, como havia no tempo de José e de Chevalier. Incontáveis amigos e amigas de Jesus ainda sofrem e até morrem, vítimas de racismo, de xenofobia, de homofobia, de machismo, de fome, de tiro… Num mundo de tantas chagas, José nos convida a nós, MSC, a nos sentarmos à mesa que ele mesmo fez para acolher Jesus e seus amigos e nessa mesa darmos aos que se sentem feridos o remédio da inclusão, do amor, da atenção, tal e qual o Coração de Jesus sempre fez. José nos convida a estar do lado certo da história, do lado dos preferidos de Deus, dos pobres, dos excluídos. Missionários do Sagrado Coração, anunciamos esse Jesus humano, amigo e acessível. Que não nos ocorra jamais nos perdermos no caminho, fazer opções erradas, e acabarmos indo nos sentar à mesa do banquete de Herodes, cujo único prato que se diz que havia, continha a cabeça de um pobre profeta decapitado. O Deus dos que se sentam à mesa de Herodes, é parecido com o próprio Herodes. Nossa mesa é outra! É a mesa do carpinteiro, a mesa do riso, da inclusão, do amor partilhado. É a mesa do Deus humano e próximo, a mesa do Deus-Amor.
É tendo tudo isso presente que penso: hoje mais que nunca, é atual continuar a pedir: São José, amigo dos amigos de Jesus, ensina-nos a sermos, também nós, amigos deles, “In aeternum” e “ubique terrarum”. Amém.
Fernando Clemente, MSC