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Sagrado Coração de Jesus

De todas as imagens que fazem alusão a um local ou espaço interior, que fala do encontro entre nossas buscas e as respostas que queremos, a mais popular e talvez a mais interessante seja a do “coração”. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, “o coração é a casa em que estou, onde moro (segundo a expressão semítica ou bíblica: aonde eu “desço”). Ele é o nosso centro escondido, inatingível pela razão e por outra pessoa; só o Espírito de Deus pode sondá-lo e conhecê-lo. Ele é o lugar da decisão, no mais profundo de nossas tendências psíquicas. É o lugar da verdade, onde escolhemos a vida ou a morte. É o lugar do encontro, pois, à imagem de Deus, vivemos em relação; é o lugar da Aliança”.[1]

O teólogo K. Rahner, S.J., recorda que a palavra coração “exprime o centro mais íntimo do homem total. Numa palavra, o coração é o centro ordenador e primitivo do todo, a pessoa na sua unidade indivisível”[2] . Por sua vez, J. B. Libanio, assim define este símbolo universal: “é o arquétipo do amor, centro vital da pessoa, propulsor de vida. Ao coração físico reagir às emoções com taquicardia, esfriamento, pressão e outros movimentos, abre espaço para fazer dele um símbolo do cuidado, da sede de vida e das emoções afetivas. O coração ama e odeia, deseja e rejeita, teme e confia. Associam-se a ele amizade, aliança. Deixa sua forma biológica para se vestir de inúmeras estilizações nos desenhos. […] É o centro mais íntimo da pessoa: daí depende tudo. É o núcleo, o centro, o ponto de junção de todas as forças humanas; é a sede das relações interpessoais; nele o ser humano se encontra com o mistério de Deus, se arquitetam os grandes amores, se experimenta a graça.[3]

Usar o “coração” como símbolo, como metáfora para falar de uma realidade interior ou espaço de intimidade é algo que acontece já há muito tempo, em diversas culturas. De maneira especial, a alusão ao Coração de Jesus, abriu caminho para uma rica tradição na história da Igreja, baseando-se sobretudo nas Sagradas Escrituras e em diversas citações dos Padres da Igreja. No século XVII, especialmente, com a devoção clássica ao Sagrado Coração de Jesus, ela se popularizou de forma rápida. Nosso fundador, Pe. Júlio Chevalier, nascido na primeira metade do século XIX, descobrirá no Coração do Cristo traspassado na Cruz, a luz e a inspiração que impulsionará toda a sua vida.

Segundo Cuskelly[4], MSC, teólogo, ex-Superior Geral da Congregação dos M.S.C. e posteriormente bispo auxiliar da arquidiocese de Brisbane, na Austrália, o carisma forjado na vida do Pe. Júlio Chevalier, responde a uma visão particularmente dinâmica que apela para uma resposta bem precisa para combater “os males dos tempos modernos” e a devoção ao Sagrado Coração como o remédio para os males de seu tempo. Olhando os documentos das três congregações fundadas por ele[5], descobrimos certas características comuns que se relacionam com o carisma do fundador: um amor profundo para com os homens; fé no amor de Deus revelado no Cristo, ou seja, a convicção de que os homens podem encontrar nele resposta para as suas necessidades mais profundas, que traz como consequência a missão de revelar este amor aos homens e que este amor deve ser revelado na caridade, na doçura, na bondade daqueles que são chamados a partilhar da missão de Cristo

O coração é, pois, o centro da divina humanidade de Cristo, segundo Cuskelly. Esta revelação de Cristo em seu amor apresenta-se a Chevalier como a última palavra de todas as coisas, e esta instituição ocorre-lhe no momento em que estava verdadeiramente inquieto pela salvação dos homens. E assim, para ele, o Coração de Cristo é “pleno de amor e de misericórdia”, o Coração de Jesus é essencialmente misericordioso. Chevalier mostrava-se impressionado pela ideia do Cristo Bom Pastor. Pensava no Cristo cujo coração sentia compaixão pela multidão; no Cristo que, por ser manso e humilde de coração, podia aliviar os fardos daqueles que vinham até ele, para nele repousar sua alma. Porém, um Cristo humilde e doce não é um Cristo fraco: o coração de Jesus possui, de modo perfeito, as virtudes de “coragem, constância e generosidade”.

Segundo Dom J. F. Lescrauwaet, MSC, bispo auxiliar de Haarlem, Holanda, e professor de Teologia na Universidade de Louvain, Bélgica, “podemos definir sua espiritualidade (do Pe. Chevalier) como uma espiritualidade do coração, pois estava, a um tempo, voltada para dentro dele e para os outros. […] Sua espiritualidade era uma espiritualidade do coração, porque acreditava, com toda força de sua alma, no poder do amor. Se lhe houvessem perguntado qual seria sua última esperança, em relação ao mundo, à Igreja e a si mesmo, sem dúvida, teria respondido o que já havia dito, com convicção: o amor é mais forte! De fato, foi nesse clima que um dia escrevera: “O Sagrado Coração, eis tudo, a última palavra! É para Jesus que tudo converge: ‘Eu sou o princípio e o fim’, e em Jesus, tudo converge para o Coração.” (Julio Chevalier, Le Sacré Coeur de Jésus, Paris, 1900, p. 76).[6]

Essa herança, se prolongou no tempo pelo que viria a ser a espiritualidade, o carisma e a missão da Família Chevalier, agregando leigos e leigas, religiosas, religiosos, sacerdotes e bispos, espalhados por todo o mundo. Mas, o que há de característico na maneira da Família Chevalier perceber e viver a Espiritualidade do Coração hoje, já que ela também é vivida por outros grupos dentro da Igreja?

Após os ventos novos que o Espírito suscitou em toda a Igreja, com o Concílio Ecumênico Vaticano II, também a Família Chevalier buscou, à luz de suas origens carismáticas e das novidades que a teologia buscava apresentar, sobretudo no campo bíblico e patrístico, rever a riqueza da espiritualidade do coração e ampliar seu conceito, que bebe na devoção clássica ao Coração de Jesus. Segundo Lescrauwaet, MSC, “a palavra “coração” deve ser tomada no “sentido bíblico do termo: coração de Deus e coração do homem”. De fato, em nosso tempo, a linguagem simbólica da Bíblia é provavelmente mais apta para alimentar nossa espiritualidade do que a dos tratados sobre a devoção ao Sagrado Coração, escritos nos séculos passados. […] Para o Pe. Chevalier, o importante era o nosso encontro com o mistério de amor de Deus no Cristo, mediante o “Sagrado Coração, no plano divino”, para que nossa vida se torne, nesse mistério de amor, iluminada, motivada e transformada. Foi por isso que aqui falamos de uma espiritualidade e não de uma prática particular de devoção”.[7]

Cuskelly esclarece que a expressão espiritualidade do coração, indica que “temos que nos interiorizar profundamente, a fim de constatar nossas íntimas necessidades pessoais de vida, de amor e do genuíno sentido das coisas; através da fé e da reflexão, temos que encontrar no Coração de Cristo a respostas às nossas próprias interrogações, ou seja, nas profundezas de sua personalidade, lá onde o desejo do homem e a honestidade de Deus se fundem numa encarnação redentora; assim, modelados por essas forças, nosso próprio coração será um coração compreensivo, sempre aberto, vibrando e se entregando a nossos irmãos em Cristo; e não nos “des-coraçãozaremos” ou desanimaremos diante das dificuldades. Como nos recorda o Vaticano II, somos seguidores de Cristo, aquele que “amou com um coração humano”.[8]

É interessante perceber um detalhe que poderia passar despercebido, mas que Kawkman, refletindo o texto acima, faz notar. Ele diz que “Cuskelly não usa a expressão “Espiritualidade do Coração de Jesus”, mas Espiritualidade do Coração”, em que “Coração” se refere tanto ao Coração de Jesus como também ao nosso próprio. A verdade é que a expressão “Espiritualidade do Coração”, como a entendia Cuskelly, indica mais claramente que, para Chevalier, “a conversão do coração” era um elemento essencial do seu carisma. Para os que querem viver a Espiritualidade do Coração é tão necessária a conversão do coração, como o foi para Chevalier”.[9]

Certamente, a Espiritualidade do Coração, compreendida aqui sob a ótica do carisma da Família Chevalier, tem seu lugar seguro de expressão nos dias atuais. Para tanto, deve buscar a fidelidade criativa, levando-se em conta alguns aspectos, que a torna crível: “possuir uma experiência do amor terno, compassivo e misericordioso de Deus; assumir o valor e a fortaleza de Cristo, como vivência de seu amor que se entrega sem limites; ter consciência de que a fidelidade e a constância de Cristo que ama com amor eterno, se manifesta como o Bom Pastor, exige uma resposta parecida; estar atentos à vontade do Pai, para realizar “em obediência e caridade fraterna” seu plano salvífico e libertador; preocupar-se com os outros, especialmente com os mais pobres e necessitados; adentrar plenamente na dinâmica do amor, aprendendo a morrer ao eu para sobrepor ao que é do outro, ao que é de Deus, ao que é do irmão e ao que é do inimigo, ao que é do necessitado e ao que é do excluído, acima do nosso eu, do nosso interesse, da nossa comodidade.”[10]

É claro, deve buscar a constante abertura dos sinais da ação do Espírito, que mostrará à luz da Espiritualidade do Coração, novas formas para propor “remédio aos males de hoje”, segundo a expressão do Padre Chevalier. Contudo, essa mudança que buscamos e esperamos, começa a partir de dentro, deste caminho que empreendemos para o formar o nosso coração e seguirá a partir dele. É esta confiança que nos motiva, “pois o mesmo Espírito que formou o Coração de Jesus está atuando em nosso coração, para reproduzir nele o perfil do Coração de Jesus.[11]

Pe. Lucemir Alves Ribeiro, MSC (O Caminho do Coração).

[1] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000, n. 2563.

[2] RAHNER, K., 1956, pp. 160-163 apud LIBANIO, SJ. J.B. A espiritualidade do Coração hoje; corações abertos a serviço da justiça e da paz. In: Corações abertos – Espiritualidade do Coração ontem e hoje; I Congresso da Família Chevalier. São Paulo: Gráfica Chevalier, 2004, p. 68.

[3] LIBANIO, SJ. J.B. A espiritualidade do Coração hoje; corações abertos a serviço da justiça e da paz. In: Corações abertos – Espiritualidade do Coração ontem e hoje; I Congresso da Família Chevalier. São Paulo: Gráfica Chevalier, 2004, pp. 70-71.

[4] CUSKELLY, MSC. E. J. Júlio Chevalier: o Homem e sua Missão. Casa Generalícia MSC, capítulo 5.

[5] Missionários do Sagrado Coração (os MSC), as Filhas de Nossa Senhora do Sagrado Coração (FDNSC) e as Missionárias do Sagrado Coração de Hiltrup (as MSC).

[6] LESCRAUWAET, MSC. J. F. Tríptico para uma espiritualidade do Coração. São Paulo: Loyola, 1988, p. 62.

[7] LESCRAUWAET, op. cit., p. 8-9.

[8] CUSKELLY, MSC. E. J. Com um coração humano. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1983, pp. 35-36.

[9] KAWKMAN, MSC. Hans. O Carisma de Júlio Chevalier e a Identidade da Família Chevalier; um itinerário para a Espiritualidade do Coração. Belo Horizonte: O Lutador, 2015, p. 73.

[10] CASA GENERALÍCIA MSC. A Caminho; Nosso Sesquicentenário. Vol. III, 2003, pp. 10-11.

[11] KAWKMAN, op. cit., p. 73.

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