Mês da Bíblia: a Carta de São Paulo aos Gálatas
Há 50 anos, a Igreja Católica no Brasil celebra em setembro o mês da Bíblia, tendo em vista que ao final do mês, comemora-se São Jerônimo, Doutor da Igreja, grande estudioso e tradutor das Sagradas Escrituras. Neste ano, o texto escolhido para orientar a caminhada de aprofundamento bíblico e teológico dos católicos é a Carta de São Paulo aos Gálatas.
No mês da Bíblia 2021, somos colocados diante de um dos mais importantes textos do Novo Testamento, uma vez que, por ele, adentramos em temáticas essenciais para a vivência cristã: liberdade, graça e o modo de viver. Nela também, conhecemos de maneira mais profunda a vida de São Paulo, que narra sua conversão e decisão de seguir Jesus. É uma carta tão atual, que parece ter sido escrita para os tempos que vivemos!
Em seus primeiros versículos, o texto deixa muito claro, de forma incontroversa, que a carta foi escrita pelo Apóstolo: “Paulo, apóstolo – não por iniciativa humana nem por intermédio de nenhum homem, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o ressuscitou dos mortos” (Gl 1,1). Em outro ponto, lemos “Vede com que grandes letras eu vos escrevo, de próprio punho” (Gl 6,11). A Carta destina-se às Igrejas da Galácia, uma região que hoje corresponde ao território da Turquia, na Ásia Menor.
Muito possivelmente, foi escrita após o ano 50 d.C., embora existam estudiosos que afirmem sua anterioridade. Isso porque a Carta de São Paulo endereçada às comunidades da Galácia, retoma em seu conteúdo apologético (defesa racional da fé) diversos elementos tratados no Concílio de Jerusalém, tais como a questão dos judaizantes: para alguns, os novos cristãos provenientes do “paganismo”, deveriam antes de se tornarem cristãos, cumprir as leis e liturgias judaicas, tais como a circuncisão, para só então serem incorporados ao cristianismo. Tal comportamento, foi fortemente combatido pelo Apóstolo Paulo, que considerava tal prática como uma ameaça à vivência autêntica do cristianismo: “ser ou não ser circuncidado não tem importância; o que conta é ser nova criatura” (Gl 6,15).
A província romana da Galácia, foi fundada por volta do ano 25 a.C., porém, desde o século III a.C., já haviam notícias históricas de que tribos migrantes da Galácia (atual França) habitavam no norte do território, o que fazia com que já nas culturas greco-romanas antigas, houvesse referências a esses povos com a expressão “gálatas”. Porém, segundo o historiador primitivo Flávio Josefo, a expressão ganhou novo significado com o Novo Testamento, passando a designar àqueles que estavam à margem, nas periferias, nas fronteiras, tanto ao norte quanto ao sul.
Conforme já mencionamos, Paulo escreve a carta aos gálatas para defender o Evangelho dos opositores que a todo momento lutavam para convencer os cristãos da Galácia a viverem aspectos da lei judaica. Missionários rivais, conhecidos como judaizantes, haviam se infiltrado nas comunidades da Igreja da Galácia, durante a ausência de São Paulo, o que causava problemas entre os convertidos gentios (não judeus).
O Apóstolo dá a entender que os judaizantes pregavam um falso Evangelho: “Admiro-me de que tão depressa, abandonando aquele que vos chamou na graça de Cristo, tenhais passado a outro evangelho. Não que haja outro, mas acontece que algumas pessoas vos estão perturbando e querem corromper o evangelho de Cristo” (Gl 1,6-7). Havia uma tentativa de se impor a lei judaica, sobretudo no aspecto da circuncisão e da realização de ritos cerimoniais antigos.
Fica muito claro que a retomada das antigas leis, além de uma forma de opressão, era também uma forma de escapar da perseguição. Os cristãos-judaizados, acabavam por ficar em cima do muro e livravam-se das consequências do abraçar a fé com convicção. Nesse sentido, nos primeiros capítulos da carta, São Paulo faz uma defesa vigorosa do Evangelho (Gl 1,11-2,10), recordando que a Nova Aliança inaugurada por Jesus dispensa os ritos da Antiga Aliança (caps. 3 e 4). Para ele, trazer para o cristianismo exigências da lei mosaica significava trocar a liberdade oferecida por Cristo pela escravidão espiritual. A carta aos gálatas é formada por uma série de alertas aos cristãos para que se afastem dos judaizantes desprezando seus ensinamentos.
Na maior parte do texto aos Gálatas, São Paulo esforça-se por definir o que é essencial na Nova Aliança de Cristo em face da Antiga Aliança. Por esse motivo, a circuncisão acaba sendo o assunto principal da carta, com a defesa que os judaizantes faziam dela. Já Paulo, ataca a prática do rito judaico. Os gálatas ficam em meio a esse fogo cruzado.
Antes da vinda de Cristo, o rito de circuncisão era a porta de entrada para a Aliança formada entre Deus e Abraão (Gn 17,9-14) e funcionava como uma espécie de sacramento de iniciação judaica (Lv 12,13). Porém, a crucificação de Jesus Cristo configura um divisor de águas na história da Aliança com Deus. Não só a circuncisão, mas o corpo de leis cerimoniais e litúrgicas promulgadas por Moisés, são colocados de lado: “Cristo nos resgatou da maldição da Lei, tornando-se ele próprio um maldito em nosso favor, pois está escrito: ‘Maldito todo aquele que for suspenso no madeiro’” (Gl 3,13).
Segundo o Apóstolo, a Nova Aliança cumpre a promessa da aliança feita com Abraão de abençoar todas as nações, encerrando-se, portanto, essa Antiga Aliança, exclusiva para o período anterior a vinda de Cristo
Por que essa Carta é tão atual? Vivemos tempos de formalismo, rigorismo e até mesmo fanatismo religiosos, por valores muitas vezes não vividos no passado. Recentemente, ao refletir em suas catequeses sobre o texto de Gálatas, o Papa Francisco afirmou: “Vimos que o Apóstolo Paulo mostrou aos primeiros cristãos da Galácia como era perigoso deixar o caminho que tinham iniciado a percorrer ao aceitar o Evangelho. Com efeito, o risco é cair no formalismo, que é uma das tentações que nos leva à hipocrisia. Cair no formalismo e negar a nova dignidade que receberam: a dignidade de remidos por Cristo”.
Em tempos de tantas escravizações, em que se deixa de lado a dignidade da pessoa humana, desprezando-se seus valores, permanece presente o ensinamento de Paulo aos Gálatas: “é para a liberdade, que Cristo vos libertou” (Gl 5,1). Valorizemos a liberdade trazida por Cristo, não desperdicemos essa dádiva com falsas expectativas e esperanças.
Dom Manoel Ferreira dos Santos Júnior, MSC
Bispo Diocesano de Registro