CUIDAR DA INTERIORIDADE É CUIDAR DA CASA COMUM
O Tempo da Criação, uma iniciativa inspirada pelo Papa Francisco, é um convite urgente para que toda a humanidade desperte para a responsabilidade coletiva pela nossa Casa Comum. A partir de sua revolucionária encíclica Laudato Si’ (2015) o Papa propõe um olhar renovado sobre o planeta e sua interconexão com todos os seres que nele vivem, alertando para a gravidade da emergência climática e a necessidade de ações concretas e eficientes.
A proposta trazida pelo documento papal, de uma Ecologia Integral, chama cada um de nós a unir as dimensões humanas, sociais e ambientais. E vai além: transcende a simples conservação da natureza, propondo uma integração profunda entre o cuidado com a criação e o compromisso com os mais vulneráveis. Isso significa que o cuidado com o meio ambiente é inseparável do cuidado com os pobres e marginalizados, aqueles que mais sofrem com os efeitos devastadores das mudanças climáticas e da degradação dos ecossistemas.
Nesse contexto, faz-se necessário buscar outras vozes afinadas com a causa ecológica para se juntar ao Romano Pontífice; referências notáveis que atestarão a impressibilidade da matéria. Irrompe, neste esteio, a figura inspiradora de Thomas Merton (1915-1968), monge trapista – escritor e poeta brilhante – ativista social – que, no Congresso Americano em 24 de Setembro de 2015, foi exaltado por Francisco como “uma fonte de inspiração espiritual e um guia para muitas pessoas”.
Ao longo de sua vida, Merton integrou a espiritualidade monástica com um profundo senso de consciência ecológica. Ele entendia que o cuidado com a Terra é parte intrínseca do autêntico espírito contemplativo, uma continuidade do tradicional respeito beneditino pela criação. Sempre argumentou que a sabedoria monástica precisava se desenvolver em sintonia com o mundo contemporâneo, respondendo às questões espirituais e sociais do seu tempo, incluindo o cuidado com o meio ambiente.
Encontramos nas obras de Thomas Merton um interessante movimento circular de desenvolvimento espiritual que flui em quatro níveis interligados: o Despertar, que envolve a relação consigo mesmo e o reconhecimento da própria identidade e interioridade; a Compaixão, que se estende à relação com o outro, nutrindo a empatia e a solidariedade em um mundo fragmentado; a Contemplação, que nos abre à profundidade do encontro com Deus e à experiência do mistério divino; e, finalmente, a Unidade, que reflete a relação com toda a Criação, levando à consciência de que somos parte de um todo maior e interdependente. Esses quatro níveis formam um ciclo dinâmico que enriquece a espiritualidade, unindo o cuidado pessoal, comunitário, divino e ecológico.
Exemplificando para fazer conexão com a vida interior, temos no capítulo “Tudo o que existe é Sagrado” do livro Novas Sementes de Contemplação, a descrição desta interconexão em movimento:
Quando somos um com Deus, no amor, nele possuímos todas as coisas, que são nossas para que as ofereçamos a Ele, em Cristo, seu Filho. Pois todas as coisas pertencem aos filhos de Deus e somos de Cristo, e Cristo é de Deus. Repousando em sua glória, acima do prazer e da dor, da alegria e da tristeza, e de tudo o mais, o bem ou o mal, amamos em tudo sua vontade, não as coisas em si mesmas. É assim que fazemos da criação um sacrifício de louvor ao Senhor. Esta é a finalidade para a qual todas as coisas foram criadas por Deus. (Merton, 2017, p. 37)
Merton, em sua visão holística dos fenômenos da própria interioridade, conseguiu transpor para as páginas do citado livro, em específico, elementos da criação para compor a paisagem do percurso e os sentimentos que surgem no caminho dos buscadores, que bebem força e alegria da vontade de Deus em todas as coisas. As imagens produzidas causam identificação e estupor:
Sem nenhuma necessidade de raciocínios complicados, esforços mentais ou atos especiais, a vida do contemplativo maduro é uma prolongada imersão nos rios de tranquilidade que brotam de Deus e fluem para todo o universo, atraindo todas as coisas de volta a Ele. Pois o amor de Deus é como um rio que jorra da profundeza da Substância Divina e flui incessantemente sobre sua criação, comunicando, enchendo todas as coisas de vida, bem e força. (Merton, 2017, p. 242)
A lucidez adquirida pelo contemplativo na imersão em si próprio em busca de Deus torna-o um arguto observador da realidade, fazendo inclinar seu ouvido a clamores inadiáveis. O cuidado com a Casa Comum não é apenas uma questão ecológica, mas uma responsabilidade profundamente espiritual. Thomas Merton reconhece que recebemos este mundo como uma dádiva preciosa das mãos de Deus, cuja criação reflete Sua bondade e amor. É neste mesmo solo que o Filho de Deus, Jesus Cristo, escolheu se encarnar, assumindo a nossa humanidade e santificando o próprio ato de existir em comunhão com a natureza.
A epifania de Merton em Louisville em 18 de março de 1958, em pleno centro comercial da cidade, ratifica essa constatação: “Graças a Deus, graças a Deus que sou como os outros homens, que sou apenas um homem entre outros (…) Sinto uma imensa alegria de ser homem, membro de uma raça na qual o próprio Deus se encarnou”[1]. Temos, apoiado nesta alegre verdade, que proteger e cuidar o planeta honra não apenas a Criação divina, mas também o mistério da Encarnação, reconhecendo que este mundo carrega a marca sagrada do amor de Deus a permear nossa vida.
Thomas Merton, que fez sua páscoa em 1968, não alcançou a crise ecológica que vivemos atualmente, mas é possível cravar que, se vivo estivesse, nenhuma situação de degradação de nossos ecossistemas escaparia de sua atenção. É certo que escreveria sobre o trágico desperdício e deterioração dos recursos naturais, denunciando como uma grave questão espiritual e ética. Em sua visão, a ecologia integral não poderia ser dissociada de um compromisso com a paz e a justiça racial, sim, pois tudo está interligado. Ele acreditava que, ao cuidarmos da criação, respondemos a um chamado mais profundo de respeito e reverência pela vida em todas as suas formas.
Por tudo isso, hoje, as iniciativas em torno do Tempo da Criação nos desafia a viver essa sabedoria, integrando o respeito pelo planeta com o compromisso por um mundo mais justo e sustentável. A exemplo de Thomas Merton e inspirado pelos ensinamentos de Francisco na Laudato Si’, somos chamados a reconhecer a sacralidade da Terra, a ter respostas eficazes à emergência climática e a cuidar uns dos outros, especialmente dos mais vulneráveis, com ações concretas e transformadoras. Onde acharemos forças para tanto? A resposta está dentro de nós!
Cristóvão Meneses
[1] Reflexões de um espectador culpado, Thomas Merton (Vozes, Petrópolis), 1970. p. 181