A tradição ortodoxa e o cuidado da criação
Entre todos os desafios que a comunidade humana enfrenta atualmente, a crise ecológica é talvez o mais grave, pois representa um risco real de destruição da humanidade e de toda a criação de Deus. Apesar de muitos ainda minimizarem ou negarem a gravidade deste problema, os seus efeitos já podem ser sentidos por todas as partes, de modo especial, nos eventos climáticos extremos que se tornam cada vez mais frequentes. Como alerta o Papa Francisco em sua Exortação Apostólica Laudate Deum, “este mundo que nos acolhe está-se desboroando e talvez aproximando dum ponto de ruptura” (2023, n.2). Diante da urgência desta situação, cabe refletir sobre como o cristianismo pode colaborar para a superação desta crise.
Por muito tempo, o problema ambiental foi visto como um assunto de cientistas e ambientalistas, sem grande relação com a religião e a teologia. Com o agravamento da crise ecológica e a ameaça de um colapso climático global, fica cada vez mais evidente que o cuidado com o meio ambiente é uma questão de interesse comum e deve ser assumido como responsabilidade de todas as pessoas e instituições. Neste sentido, a questão ecológica tem ocupado cada dia mais espaço no contexto teológico, de modo que grandes teólogos têm se dedicado ao tema do cuidado do meio ambiente. Um dos grandes representantes desse movimento tem sido o Papa Francisco, que tomou o cuidado da criação como um dos temas centrais do seu pontificado. Em seus escritos e pronunciamentos, Francisco faz críticas contundentes ao sistema econômico, social e político que está levando à destruição do planeta e convoca todos os cristãos à responsabilidade socioambiental.
Embora tenha ganhado destaque no Ocidente, a defesa do meio ambiente não é uma novidade no cristianismo, mas uma causa que os cristãos do Oriente assumiram há décadas. Muito antes da Igreja Católica Romana reconhecer a gravidade da crise ecológica e comprometer-se de forma explícita com o enfrentamento do problema ambiental, os ortodoxos têm se posicionado sobre o assunto e buscado alternativas de superação deste problema. A primeira encíclica ecológica ortodoxa foi publicada em 1989, pelo Patriarca Demétrio I, que também instituiu o dia 1º de setembro, abertura do ano litúrgico ortodoxo, como o Dia de Oração pelo Cuidado da Criação. Seu sucessor, Bartolomeu I, assumiu de forma ainda mais radical a defesa do meio ambiente, fazendo diversas publicações e pronunciamento sobre o tema, sendo considerado por muitos como o “Patriarca verde”. Esta atitude de valorização da natureza não é uma novidade no cristianismo oriental, mas algo que sempre fez parte da tradição ortodoxa.
Uma das grandes inspirações que os ortodoxos têm para valorizar a criação vem da Eucaristia, que foi muito mal compreendida ao logo da história cristã. Como explica o Metropolita Ioannis Zizioulas, no Ocidente, “a Eucaristia está unida com a manifestação de um pietismo que a vê como objeto, uma coisa e como um meio para expressar nossa piedade ou favorecer a nossa salvação individual” (2001, p.81). Ao compreender a Eucaristia como relação individual de cada pessoa com Deus, o cristianismo ocidental acabou negando o lugar da criação na liturgia. Por sua vez, os ortodoxos preservam uma visão eucarística mais ampla, que vem dos primeiros séculos do cristianismo. Nesta visão, a liturgia é entendida num sentido cósmico, como uma ação (práxis) da assembleia (synaxis) em comunhão com toda a Igreja. Em tal perspectiva, criação e Eucaristia estão intimamente associadas de tal modo que, como escreve Zizioulas, a liturgia ortodoxa se apresenta como “a mais positiva aceitação do mundo e da criação” (2001, p.82). Esta experiência litúrgica transforma o modo dos fieis se relacionarem com a natureza no cotidiano.
Outra grande inspiração dos cristãos ortodoxos para valorizar a criação vem da tradição ascética, tópico que também é causa de muitos mal-entendidos no cristianismo. Com grande frequência, a prática ascética está associada à hostilidade em relação ao corpo e ao desprezo pelo mudo material em favor das coisas espirituais. Visto desta forma, o ascetismo se reduz a uma ação individualista que acaba por negar o valor do mundo. Contudo, esta é uma interpretação superficial de uma prática que tem um significado muito mais amplo e profundo. Como explica a teóloga ortodoxa Elizabeth Theokritoff: “Quando se trata do uso do mundo material, torna-se muito claro que o ascetismo não é uma questão individual de autoaperfeiçoamento, mas algo profundamente comunitário: tem a ver com a forma como usamos os dons concedidos em benefício de todos” (1990, p.105, nossa tradução). Ou seja, a austeridade vivida pelos ascetas não é uma atitude de egoísmo tão pouco de negação do valor da criação. Muito pelo contrário, os ascetas são exemplos proféticas para todos os cristãos de uma relação correta com os bens do mundo e do esforço de viver em harmonia com toda a criação. Sobre o profetismo ecológico dos ascetas, Zizioulas escreve:
Nos mais antigos gherontika (coleção de histórias e ditos dos monges) encontram-se narrações de ascetas que choravam a morte dos passarinhos ou que viviam em paz com os animais selvagens. Ainda hoje podem ser encontrados no Monte Atos monges que nunca matam as serpentes, mas que pacificamente convivem com elas – coisas que fariam arrepiar e tremer até o melhor cristão entre nós (2001, p.31).
Portanto, a tradição ortodoxa oferece um valioso testemunho da relação intrínseca que existe entre fé cristã e cuidado com a criação. Ainda que esta relação tenha sido esquecida no Ocidente, ela se constitui como um elemento central da fé cristã que sempre pode ser resgatado, pois de acordo com as palavras do Papa Francisco na Encíclica Laudato Si’: “Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa” (2015, n.217). Em tempos tão sombrios, em que muitos temem que o mundo possa não ter mais retorno, a tradição ortodoxa recorda que o cristianismo é portador de uma mensagem de esperança em relação à natureza e desafia a comunidade cristã a ser um espaço de florescimento de uma atitude reconciliação com a criação.
Diego Artur Wust
REFERÊNCIAS
FRANCISCO, PP. Exortação Apostólica Laudate Deum. A todas as pessoas de boa vontade sobre a crise climática. São Paulo: Paulinas, 2023.
FRANCISCO, PP.. Carta Encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. Brasília: CNBB, 2015.
THEOKRITOFF, E. Living in God’s creation. Crestwood/ New York: St. Vladimir’s Seminary Press, 1990.
ZIZIOULAS, I. A criação como eucaristia: proposta teológica ao problema da ecologia. São Paulo: Editora Mundo e Missão; Florianópolis: Itesc, 2001.