A intriga da Cruz
O amor é sempre intrigante, isto quer dizer, desconcertante, causa certo mal-estar, suspende a lógica institucional causa-efeito, supera o programado para trazer a surpresa. O amor é estranho e intrigante, se expressa na mãe que se lança em uma correnteza, mesmo sem saber nadar, para salvar seu filho; o amor nos choca quando uma criança chora por ver seus pais chorarem por não terem o que colocar na mesa; o amor até irrita, quando o pai, a mãe perdoa o filho que mais erra. Mas se não fosse de para lá de nós o amor estaria submetido a causa-efeito, tal como o mal, mas não, o amor vem de lá, vem de Deus. A tanto que Ele nos escandalizou com o amor.
Os evangelistas demonstram como o amor de Deus nos é estranho e atraente. Quando eles relatam os chamados anúncios da Paixão, deixam escapar que os discípulos não compreendiam, não aceitavam, não conseguiam chegar mental e espiritualmente próximos à estatura do amor de Deus. Pedro trafega entre uma iluminação divina e uma percepção meramente egoística (Mt 16,13-23); em Mc 9,30-32, os discípulos não entendem, têm medo, a novidade de até aonde o amor Deus poderia ir é para eles de difícil compreensão; o terceiro evangelho relata a lentidão dos discípulos para compreenderem até aonde poderia ir o amor de Deus (Lc 9,31-34); o quarto evangelho não é diferente, seja na passagem com Nicodemos (Jo 3,14) ou no anúncio de sua glorificação (Jo 12,20-36), as pessoas têm dificuldade para crer. O amor, de fato, é assim, difícil de acreditar, desafia nossos costumes.
A teologia oriental chama a Cruz de o “amor louco de Deus”. Desde Santo Atanásio e São Basílio aperfeiçoa-se uma teologia agápico-kenótica de Deus, que quer falar desse “amor-louco de Deus”, amor difícil à nossa compreensão, amor que ama gastando-se a si mesmo pelo amado, amor no qual o único prazer é amar. É assim que nos diz o teólogo oriental Evdokimov, “na cruz, a glória de Deus se manifesta como amor desmesurado e, por isso, amor salvífico”. É assim que Deus ama desmesuradamente, surpreendendo a humanidade. Esse amor-louco está profundamente unido à criação, ao criado dileto de Deus, que é o homem, o amor-louco expõe como Deus é filantropo, isto é, como Deus ama a humanidade e, amando-a, ama todo o criado. Deus na Cruz não ama isto ou aquilo, nela Deus é filantropo, Deus ama a humanidade.
Qual o fruto da Cruz? Primeiramente o conhecimento do amor-louco de Deus, em segundo a redenção-salvação da humanidade e ainda um terceiro, segundo a teologia oriental, “ao ser humano pede-se somente recordar que Deus o ama”. Assim, a cruz não nos ensina um rito, não nos ensina uma doutrina, não nos submete a uma regra; ela nos atrai (Jo 12,32) por força desse amor intrigante, surpreendente, filantropo. Diante disto podemos ainda escutar Evdokimov, citado por Koubetch, “é necessário aplicar a Deus a noção assaz paradoxal da debilidade invencível. A única resposta adequada consiste em afirmar que ‘Deus é fraco’ e que não pode fazer outra coisa senão sofrer conosco; o sofrimento é ‘o pão que Deus entredivide com o homem’. Sob esse aspecto de debilidade é que Deus aparece a Nicolau de Cabasilas, como amor louco de Deus pelo homem”.
Os cristãos do Ocidente, especialmente nos tempos de Papa Francisco, têm chamado a Cruz de misericórdia, de associação de Deus com o sofrimento humano. Assim, a Cruz se expõe como amor radical, amor-louco, como amor de Deus pela humanidade. O que podemos apreender desse Mistério? Primeiro, saber que Deus ama a humanidade; segundo, saber que por isso nenhum rito, nenhuma instituição, nenhum bem ultrapassa em valor a dignidade e o bem do ser humano e não apenas de toda a humanidade, mas de uma única pessoa, semelhante àquela mãe que se lança na correnteza para salvar seu filho. Deus é filantropo.
Pe. Abimael F. Nascimento, msc
Faculdade Católica de Fortaleza